CARTA
ABERTA DOS POVOS INDÍGENAS DO ACRE – BRASIL À CONFERÊNCIA MUNDIAL DA
AYAHUASCA (nixi pae, huni pae, uni pae, kamarãbi, kamalanbi, shuri,
yajé, kaapi…)
Nós,
abaixo-assinados, presentes nesta Conferência, pertencentes aos
povos indígenas Yawanawa, Shanenawa, Jaminawa, Huni kui, Apurinã,
Manchinery, Katukina, Nukini, Puyanawa, Ashaninka, Madja, Jamamadi,
Nawa, Shawãdawa, Apolima-Arara, Jaminawa-Arara e Kuntawa, presentes no
Estado do Acre e Sul do Amazonas desde nossas ancestralidades, somos 17
povos indígenas de 36 terras indígenas reconhecidas pelo governo
federal, falantes das línguas Pano, Aruak e Arawa, perfazendo uma
população estimada em 23.000 indígenas, os quais estão distribuídos em
aproximadamente 230 aldeias. Vale lembrar que tais terras estão situadas
em 11 dos 22 municípios acrianos.
A II
WORLD AYAHUASCA CONFERENCE foi
realizada na cidade de Rio Branco-AC entre os dias 17 a 21 de outubro
de 2016, tendo como objetivo maior: “promover um espaço de diálogo,
partilha e aprendizagem, sinergia e colaboração, no respeito pela
diversidade cultural das
tradições da ayahuasca”.
Isso
ficou evidente a partir do momento em que se constituiu a primeira
Mesa, na qual já ficou perceptível qual seria o tom geral do Evento.
Nesse primeiro momento, já se verificou que não seria dada condição de
amplo debate e participação dos indígenas, tanto dos palestrantes, como
da plenária, e percebeu-se que seria este o tom geral da Conferência.
Assim sendo, vimos manifestar nossa insatisfação para com as questões a seguir:
A
I Conferência Internacional, que aconteceu em Ibiza, na Espanha, não
contou com a participação ampla dos povos indígenas que são os
verdadeiros detentores desse conhecimento, posto que na mesma estiveram
presentes apenas dois Huni Kui.
Não
foi repassado aos povos indígenas nenhuma informação oficial das
discussões realizadas nesta primeira Conferência, nem dos
encaminhamentos procedidos na ocasião.
Acreditamos
ser questionável o próprio nome dado ao evento, “Conferência da
Ayahuasca”, uma vez que ele é genérico, e não contempla as diferentes
designações dadas por cada povo. Note-se que, um nome, não é apenas “o
nome”, uma vez que a ele estão atrelados conceitos simbólicos de suma
importância cultural e espiritual para cada um dos povos que faz uso
dessa bebida. E bom lembrar também que não estamos conferindo nada
acordado anteriormente com qualquer povo indígena.
Ainda
que este evento conte com maior número de participantes indígenas, não
estamos nos sentindo realmente parte de sua criação e organização.
O
formato das mesas também não nos contempla, uma vez que a duração
dessas mesas não dá espaço para o debate necessário. Não houve tempo
para os palestrantes expressar o que haviam se preparado para dizer, nem
houve tempo para debater. Entendemos que o formato do evento é
‘acadêmico’, mas acreditamos que o evento deveria ter compreendido que a
maior parte dos participantes não são oriundos do meio acadêmico, e,
sequer o assunto da conferência é acadêmico, visto que a Ayahuasca não
se restringe a um tema científico, mas fala de identidade, saber,
ritual, sacralidade, cultura, vivências e práticas milenares. E
entendemos que a Academia deveria considerar e contemplar essas
especificidades, e não impor o seu formato.
Nós
indígenas não fomos convidados a participar de muitas das mesas, a
despeito do fato de que os temas debatidos eram de interesse dos
indígenas.
As mesas estão
acontecendo de maneira simultânea, o que impede a participação ampla das
pessoas, que precisam escolher qual das palestras assistir.
Encaminhamentos
Por
meio de um diálogo majoritariamente indígena, nós participantes desta
Conferência não tomaremos nenhuma decisão relacionado aos assuntos
abordados neste evento, sobretudo, aqueles de caráter mais relevante,
sem antes de:
a)
promover a realização de encontros indígenas em que se faça presente
todos os detentores do conhecimento das plantas (cipó e a folha) com as
quais se prepara a bebida sagrada que está sendo chamada de Ayahuasca,
com a presença das instituições responsáveis e envolvidas na discussão
de patrimonialização.
b) discutir
melhor o assunto sobre patrimonialização, pois durante sua abordagem
fragmentada ocorrida na conferência, não ficou claro para os povos
indígenas o que significa isso na sua essência.
c)
fazer um Grupo Técnico (GT) sob a coordenação e orientação dos
indígenas para a realização de consultas em respeito aos detentores do
conhecimento sobre a Ayahuasca e ao Decreto nº 5.051, de 19 de abril de
2004, que diz que o Brasil deve respeitar a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho – OIT, e consultar as comunidades indígenas
antes das obras (prévia), da forma que as próprias comunidades
escolherem para ser consultadas (livre) e ainda tem que levar todas as
informações que existem sobre o empreendimento (informada).
d)
constituir um conselho ético para discutir o assunto da origem e
definir critérios sobre o uso e a patrimonialização da Ayahuasca, e a
partir dessa perspectiva e entendimento, realizar reuniões com as
igrejas e demais segmentos que utilizam essa bebida sagrada, diante
disso, poderemos apresentar nossa posição sobre os assuntos.
e)
Requeremos a garantia de participação dos povos indígenas dos demais
estados brasileiros que fazem uso da bebida sagrada na discussão sobre a
patrimonialização;
f)
Requeremos, ainda, o direito de deliberação, participação e planejamento
do que acontecerá nas próximas Conferências Mundiais da Ayahuasca, a
partir da próxima que está previsto a realizar-se em Tóquio no Japão.
Requeremos também a participação igualitária em todas as mesas de debate
no âmbito do evento;
g)
Requeremos, por fim, que as Conferências Mundiais da Ayahuasca e os
órgãos públicos e privados que discutem o tema reconheçam as tradições
de uso, de cura e de preparo dos líderes espirituais dos povos
indígenas.
Por fim, reafirmamos
que estamos dispostos a colaborar em todos os processos para os avanços
das discussões para o uso e o Direito da consagração da bebida por toda a
humanidade.
Rio Branco, Acre, 21 de outubro de 2016.